teve medo de não ser o suficiente, de não agradar aqueles que ele tanto ansiava por agradar, estava em todos os meios, todas as festas, conversava com todas as classes e não havia um cidadão daquela bela cidade que não o tivesse visto em algum lugar, transitava entre os moradores de rua, os milionários, as atrizes e os poetas.
aquele anoitecer crescia diferente, o sol cabisbaixo perdia seu protagonismo para as lágrimas da lua, denominadas de estrelas. olhando pra baixo, finalmente, poderia vê-lo caminhando para o bar.
não sei ao certo como vim parar aqui, eu não sentia no ar aquele clima agradável que essa bela cidade sempre me proporcionou, os lugares já não me acolhiam como o faziam antigamente. estava no meu mandato de reeleição, havia tido vários embates, muitas vitórias, incontáveis conversas, e muitos anos de carreira. desde adolescente praticava a arte da política, tive essa vontade, assim de repente, queria aprender com as pessoas, conhecer os diferentes meios e realidades da sociedade, adquirir cada vez mais humanidade, intensidade, me sentir verdadeiramente vivo por desfrutar dessa habilidade, além da política ser extremamente necessária nos dias de hoje, é como dizem, quem tem um amigo tem tudo.
nunca, em todos meus anos de Curitiba, havia entrado por essa porta, caminhei vagarosamente até o balcão, senti o puro cheiro da ausência, do vazio e do desespero, quantos gatos pingados haviam por lá? não tenho certeza, sei que me sentei no banco mais alto do bar, e pedi o conhaque mais gelado que o vizinho tinha.
já estava acostumado a me vestir bem em todos os lugares que ia, na verdade, adequadamente com o que o ambiente demandava, sociedade é tudo sobre contexto, e eu sempre estava próprio pra desfrutar da estima das pessoas que me propunha a interagir, mas naquele momento eu nem sabia o que vestia, nos meus pés talvez houvesse um sapato marrom meio mal amarrado, nas pernas possivelmente até uma calça de moletom, mas curiosamente portava uma camisa branca, com o último botão aberto e minha gravata azul marinho frouxa no pescoço.
olhei pela janela quebrada logo na minha esquerda, e senti uma névoa quente passar pela porta, olhava as árvores se mexendo com o vento lá fora, e o raro barulho de algum carro passar na rua. do meu lado, entretanto, uma conversa rolava solta, mas não me dei o trabalho de virar a cabeça pra prestar atenção.
- ei, meu amor, liguei pra te dizer que eu não deveria ter feito isso com você, eu tô acabado, nem eu mesmo me aguento mais, te entendo por me odiar agora, me desculpa por fazer isso contigo e com o Pedro, vocês não merecem nada da desgraça que eu tenho pra oferecer em todos os lugares que eu passo. eu tô saindo daí amanhã, vou pegar minhas coisas e ir embora, mas antes disso, deixa eu ver ele mais uma vez, a última vez, vou sentir saudade do meu filhão, quero ver o rosto dele uma última vez pra daí sim deixar vocês em paz.
realmente não sei ao certo como vim parar aqui, será que foi o clima estranho? será que foi a derrota na campanha semana passada? será que foi a guerra no oriente médio? eu tenho quase certeza de ter usado branco na virada desse ano. será que eu tô ficando velho e meu cérebro tá cansando de viver?
- oh rapaz, me dá um gole desse conhaque aí
parece que eu acordei do sonho que dormia no balcão do bar, assustado com a voz grossa.
- opa, quem é você?
- e isso importa agora? olha onde você tá, olha pra você, tu tá acabado ein.
- não tive tempo de me arrumar antes de sair de casa.
- pare de falação e passe logo pra cá esse conhaque, minha garganta tá seca.
- por que tu quer tanto esse conhaque? ele é tão importante assim?
- eu quero esse conhaque porque é tudo que eu sempre busco, e depois que eu tomar o conhaque vou saciar a minha vontade, até que ela surja de novo e se repita até o fim da minha vida.
então ele tomou o conhaque como se fosse a última coisa que ele faria antes de morrer.
na verdade, eu sabia por que estava ali, sentia tudo como se fosse um pássaro voando dentro de mim, enclausurado no meu estômago e ansiando voar para bem longe dali. sentia-me sozinho, ah, sim, era isso, olhava para todos os lados e não conseguia encontrar ninguém que não fosse eu mesmo, ansiava preencher esse espaço em meu ser que tanto faltava em mim, como uma pedra pequena em meu sapato, que toma toda minha atenção. tudo que eu queria naquele momento era simplesmente alguém pra me acolher, pra passar a mão em meu cabelo, olhar-me nos olhos e dizer que está tudo bem. alguém para falar que não consegui fazer tudo que me propus a fazer hoje, que tenho saudade de ter a mesma energia do passado, alguém para dar risada das minhas piadas sem graça e contar as estrelas no céu como tanto gosto.
vejo em todos, conexões verdadeiramente profundas, almas que se identificam e vão para os lugares juntos, sentem os sentimentos juntos, conversam sobre os diferentes assuntos juntos, temem as mesmas coisas juntos, podem discordar sobre deus e o mundo, mas o fazem juntos. compartilham o fardo do desespero que é estar vivo, navegam juntos pelo mar do caos e da incerteza, tornam as grandes dores, pequenas, tornam as grandes incertezas, diversão pelo caminho.
mas onde eu vou parar no meio de toda essa história? conheço tanta gente, tenho tantas mensagens no meu celular todos os dias, mas recebo tão pouca atenção que realmente clamo, me sinto como um grandioso rio, cheio de nascentes e derivadas, que anseia para que mergulhem dentro, que molhem seus corpos inteiros, que não somente tomem banho, mas que passem a tarde, pescando, tomando cerveja, apreciando a correnteza e o reflexo do sol. mas um rio que poucos sabem navegar, e que loucura é essa a do ser humano de necessitar tanto que outros o olhem, que outros o digam que se veste bem, que seu vocabulário é aguçado, que seus olhos miram esperança no horizonte, que as belas moças sorriem em sua direção, que achem suas ideias válidas, suas atitudes dignas e que receba o verdadeiro reconhecimento por simplesmente existir.
e eu que sempre achei os seres humanos charmosos, curiosos, intrigantes, e verdadeiramente interessantes, sinto pena de mim mesmo, que passei a vida toda correndo atrás de sombras na caverna, dando porradas em ponta de faca, tentando tirar mel de onde só saem larvas e ovos podres, mas ainda sim, salivo só de pensar em estar entre os meus. o que será que significa fazer parte de algo? seria tão fácil como eu tanto imagino? é uma pena que só posso imaginar, porém, temer me mostrar tão profundamente pro mundo.
queria mesmo era que entrassem dentro da minha cabeça, e que eu não precisasse dispensar toneladas de esforço pra tentar fazer as pessoas me entenderem. invejo verdadeiramente os pássaros por eles saberem voar, tornam-se um só com o céu azul radiante, não têm partes independentes, não têm medo de não pertencerem, e seus lugares são lá em cima, observando tudo de cima, nada de baixo, tudo sem medo, porque já criaram conexões fortes, íntimas e verdadeiras. bem que o ser humano poderia também voar, o ser que não se encontrasse em esquina nenhuma, em boteco nenhum, em noite estrelada nenhuma, aquele que não tem nada além de si mesmo, para si mesmo, ao menos contemplaria uma paisagem digna de se sentir parte de alguma coisa.
inopinadamente a garrafa de conhaque tinha chegado ao fim, e ao fim também estava eu me aproximando, minha bunda começava a doer pela dureza da cadeira, às horas eu não devia mais nada, uma chuva leve começou a se formar, mas eu estava ali, sentado no escuro do bar, rodeado por malucos mais perdidos do que eu, e ao meio de loucos e escombros, ao menos ali, eu estava feliz.