fazia meses desde a primeira cirurgia, um tumor de doze centímetros no cérebro, o médico disse que estava curada, ao menos era o que pensávamos até os quinze primeiros dias.
era uma noite amena de final de ano, não aquele calor que sempre costumava fazer nos cantos aqui pra baixo, a mãe estava assim desde agosto, mal conseguia formular as frases, caminhava com o auxílio do pai, que carregava ela por trás, chutando seu pé direito que não conseguia dar o próximo passo, precisava proferir o nome de quase todos os netos, filhos, sobrinhos (às vezes até irmãos!) pra chamar quem queria, não crochetava com a malícia de antigamente e acordava às vezes chamando o nome do filho que já tinha nos deixado pra trás. tentamos de tudo, quimioterapia, radioterapia, cirurgia, eu e o pai acreditamos na única chance em cem mil pra salvar ela, viajamos à Porto Alegre diversas vezes, deixei a malharia, os filhos, o marido. pra alguém da idade dela era quase um caso perdido, mas era ano novo e estávamos reunidos.
o Antônio servia-se do bolo que eu tinha feito para a ceia, era um bolo simples, mas que todos adoravam e pediam pra fazer mais, foi ela mesmo que me ensinou a fazê-lo, lembro das tardes que nós passávamos na cozinha conversando e mais fazendo bagunça do que propriamente comida, ela me ensinou a fazer o doces que, anos depois, meus filhos raspam a panela em busca de que ele nunca acabe, foi ela que me ensinou a usar vestido florido, a gostar dos tangos que o pai dançava e a fazer crochê enquanto assisto TV. foi bem ela que me ensinou a nunca aceitar menos do que eu mereço, a sorrir e ser gentil, a educação com a vizinhança e a sempre ir atrás daquilo que eu verdadeiramente acredito.
agora está aí, com sessenta anos, as pernas cansadas da existência e o tempo contado.
mas era ano novo, e estávamos reunidos. minutos antes da meia noite nós abríamos um champanhe, fui à cozinha, peguei cinco taças e voltei para a sala, a mãe sentava do lado do pai, que parecia meio impaciente antes de eu chegar, servi taça a taça, tomando cuidado para não derramar no chão, então, levantávamos os braços em brinde a qualquer coisa que poderia acontecer depois dali. notei, porém, que a mãe olhava tão fixamente para minha mão, ela, que sempre foi uma árdua admiradora de champanhe na vida, mirava sem tirar os olhos.
“mãe, quer um gole?”
parecia que eu tinha dito a maior desonra da vida naquela frase.
“Rosa, tu tá louca? a mãe desse jeito e tu querendo dar champanhe pra ela, é só o que falta mesmo, né.”
sentia quase um oceano nos meus olhos e um vulcão no meu peito.
“e daí, Antônio? o que vai mudar? que ela ao menos aproveite enquanto está aqui.”
o momento esfriou, eles cederam e eu estendi meu braço pra mãe tomar um gole. seus olhos, ah, seus olhos, brilhavam como o mais ardente sol da manhã, alçavam voo como os balões da Capadócia, vislumbravam a liberdade como os gatos que saem de noite pelas ruelas da cidade, encontravam a luz no final do túnel que tanto ansiavam achar, eram como pássaros voando longe no horizonte, sem medo, sem preocupação, ela tomava o champanhe como se fosse sua última taça da vida.
já era meia noite, um ano novo se aproximava, e o que poderíamos esperar? eu estava cansada e precisava ir pra casa aliviar a cabeça. algumas horas depois de deitar e adormecer, ouço o telefone tocar, acordo desesperada, temendo ser aquilo que eu pensava.
“é, minha filha, não teve muito jeito, tua mãe morreu.”
...
“ela pediu pra ir no banheiro, eu levei ela até lá, fiz ela sentar no vaso, e segurando as minhas mãos, olhando no meu rosto, chamou meu nome três vezes e desligou, morreu.”
dona Lea ia cedo, nos braços do meu pai, juntos e para sempre.